domingo, 28 de março de 2010

Última página do livro Monólogo de um Preso

DEMORÔ MAS CHEGOU

Getulina, 16/08/2002 – l6h30


Exatamente, sete anos onze meses e cinco dias.

Deus ressuscitou-me. Estou na mesma cela em que cheguei, só que agora para sair. Obrigado, Senhor!!!

Agora é nova vida.

Voltei no raio para procurar uma ordem de saída dos meus papéis. Não encontrei. Aproveitei e peguei Sabedoria em Gotas. Havia terminado de tirar todas as orelhas. De qualquer forma na portaria dou uma idéia, provavelmente consigo, afinal de contas, são meus. Incrível é a raiva. Pode se dizer que estou livre, mesmo assim... vou ficar trancado até 21h30, horário do ônibus para São Paulo. Agora são no máximo 17 horas.

Juracy Ribeiro, sou-lhe grato por tudo eternamente. – Te amo!!!

Imagino que você já saiba que hoje estou renascendo. Sem palavras que expressem o que sinto. Agora é fazer as coisas certas. Realizando tudo que pensei, imaginei, sonhei, idealizei, planejei. Agora está fácil. Já sou voluntário!

Cheguei num plantão, estou saindo noutro. Divergi com os dois que somados não chegam nem perto dos reeducadores de que o sistema necessita.

Essas horas que ficarei aqui serão as últimas de minha vida carcerária.

O funça veio me pagar a janta – recusei. Acho que é picadão. Eca! Fui à cozinha despedir-me de um mano. Gosto dele, mas... não sei até onde posso confiar nele. Na humanidade.

O Afro-X está livre. O Padre Molina comentou hoje pensando ser notícia nova. Veremos se ele fala alguma coisa do livro. Se sim, legal, se não, bom também.

Não posso esquecer, tampouco ignorar que o funça que me requisitou pela matrícula se chama André Luís, baixinho, sempre tranquilo, ímpar.

Louvados sejam os Bons Espíritos, que emanam o Bem a meu favor.

O tempo parece que parou nesta cela. Li o testemunho de uma ex-assaltante Rosângela Domingos, enquanto aguardo finalmente os portões se abrirem praticamente, pois literalmente já se abriram.

São 18 horas. Só sairei às 21h ou mais, contudo, o que são essas três horas comparadas às mais de 70.000 horas que já superei, sem certeza de nada?

Sr. Valdecir veio despedir-se. É um gaioleiro de quem peguei bastante no pé quanto à função reeducativa dele, mas... não é dos piores, e, até que dentro das limitações de ínfimo carcereiro, se esforça para cooperar conosco.

Uf! O dr. Rômulo... Devo-lhe desculpas. Demorô, mas ele cumpriu.

Putz... amanhã jogo futebol com meu sobrinho, e pagarei sorvetes para todos: minha filha Sthefany, meu sobrinho Michel, sobrinhas Miriam, Naara, Nathalia, Emerson e irmãzinha Karen.

Fui o único da penitenciária a ser agraciado com o benefício esta semana. Que na próxima possam muitos receber esta graça. Amém!

Minutos antes de cantar minha Liberdade Condicional discuti com um cara na cela por besteira. Eu queria ajudá-lo a lavar umas cortinas de banheiro. Chegou até a perguntar se eu queria que ele se mudasse. Ontem tentou me apavorar, quando viu que jamais conseguiria falsamente riu e falou que era mula. Não antes de eu lhe dar um rodo e apertar o pescoço dele com uma toalha. Se naquela medida de força ele se sentisse mais forte que eu... não sei não... Mas sou guerreiro de Deus, que me fortifica.(...).

O chefe de plantão noturno, sr. Luiz, veio no guichê com um palito na boca e disse-me o que eu sabia – que irei às 21h15. E que meus pertences estão aqui. Disso eu não sabia. Tudo OK! A passagem para Sampa já está comprada. Firmeza.

O sr. Luiz, quando cheguei aqui há um ano, três meses e cinco dias, foi o único que nos deu atenção e deixou que eu pegasse alguns pertences, pois estávamos apenas de cuecas.

Ouço Titãs, Diversão. Lembro-me da Juracy. Vou conhecê-la está semana.

Não são nem dezenove horas ainda, mas está chegando... Vou ter a chave que Charrière não teve. Teve de fugir, mesmo assim conseguiu ser livre para sempre.(...).

Não compreendo essa tia que o segurado manda não sei pr’onde – acho que pro raio I – quando cheguei aqui foi assim e hoje também. Não entendo.

Não vejo a hora de comer um x-salada e beber uma fanta uva.

Longe de mim blasfemar, porém estou ressuscitando do túmulo de concreto e aço.

“O ESPÍRITO PRODUZ AMOR, ALEGRIA, PAZ, PACIÊNCIA, DELICADEZA, BONDADE, FIDELIDADE, HUMILDADE, (RESIGNAÇÃO) E DOMÍNIO PRÓPRIO.”
Gálatas 5, l6.22-25

Acabou de chegar um de bonde de Lins, pegou o colchão em que eu estava sentado, pois vou embora. (...) Perguntei a hora.

-- 20h20 -- responde sr. Luiz.

-- Tá chegando.

Pensei que fosse menos. Ele disse que o funça que vai me levar ainda não chegou. Por mim... vou sozinho ou ele remaneja.

Reli o que escrevi neste caderno, o qual ganhei do Ibiúna Mão-de-Alicate (Só tem o dedão e o indicador da mão direita. Perdeu os outros numa máquina de moer carne).

Agora vou chamar o sr. Luiz, pedir para arrumar minha coisa e... FREEDOM. RESSURREIÇÃO. Chegou o grande momento. VENCI, SOBREVIVI!!! GRAÇAS A DEUS.

Meu Anjo Ierathel sempre me apoiou e apoia. Nesses últimos minutos na Penitenciária Osiris de Souza e Silva, Getulina. Vou copiar uma página de SABEDORIA EM GOTAS, de Fausto Oliveira, presenteado pela minha musa Juracy.

“A PERCEPÇÃO DA COMPREENSÃO’’
“Parece que estou desenvolvendo cada vez mais minha

compreensão.

Estou percebendo que me conheço melhor e que tenho facilidade

de conhecer e entender todas as pessoas em seus motivos ou

reações, mesmo sem concordar com elas.

Já não sinto necessidade de ser compreendido, nem cobro isso de

ninguém.

A lei afirma que é dando que se recebe, e amando que se é amado

e é compreendendo que recebemos compreensão

E o melhor de tudo: sinto-me melhor.

Sinto que essas coisas já são verdadeiras para mim!”



Ufa!!! 20h55. Chamei o sr. Luiz:

-- Faz favor aqui, seu funcionário.

Na terceira chamada ele surge na porta da chefia, mastigando e pergunta:

-- O que está acontecendo?

-- Num deu a hora não? Dá pro senhor dar descarga, por favor? Num deu

o horário não? Dá pro senhor ligar a água, por favor? Estou com sede.

-- 21h15.

Ele dá a descarga, liga e desliga a água. Volta. Ufa... vinte minutinhos.

Vou ligar para mãe pedir pro Dinho buscar-me na Barra Funda. Já começou a novela. Li todos os panfletos evangélicos que estão nesta cela.

-- ops... ainda passa o jornal nacional.

Estou voltando pra casa – pra vida, progresso e prosperidade com Amor estudo e suor.

Fiquei tocando um funk na porta. O sr. Luiz veio ver. Eu pedi:

-- Sr. Luiz, solta eu, por favor.

-- Já vai! -- responde.

Ele volta secando a mão num pano.

Lá vem com as chaves...

Do livro inédito Monólogo de um preso, de Sérgio Roberto, ou SR-X.

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