sábado, 14 de agosto de 2010

Libertação do erro, de Al- Ghazzali

A CHEGADA À VERDADE PELA ILUMINAÇÃO

     Por fim, Deus curou-me da doença. Meu ser foi restaurado à saúde. As verdades necessárias do intelecto voltaram a ser mais uma vez aceitas, quando reconquistei a confiança em seu caráter certo e fidedigno.
     Isso não surgiu pela demonstração sistemática ou argumentação disciplinada, mas por uma luz que Deus, o Altíssimo, lançou no meu peito. Essa luz é a chave para a maior parte do conhecimento. Quem pensa que a compreensão das coisas divinas repousa sobre provas estritas, amesquinha em seu pensamento a largueza da misericórdia de Deus. O que o Mensageiro de Deus respondeu aos que lhe pediam que explicasse e contasse o versículo "Quando Deus deseja guiar um homem, Ele alarga seu peito para a submissão no Islã." (Alcorão, 6, 125)?
Respondeu:
     "É uma luz que Deus, o Altíssimo, lança no coração." Quando perguntaram: "Qual é o sinal desta luz?", respondeu: "A retirada da mansão da decepção e a volta à mansão da eternidade."
     Foi acerca dessa luz que Maomé disse: "Deus criou as criaturas no escuro e depois aspergiu sobre elas um pouco da Sua luz." Nessa luz deve ser procurada uma compreensão intuitiva das coisas divinas. Essa luz jorra, em certas ocasiões, da fonte da divina generosidade, e por ela se deve vigiar e esperar. Maomé (que a paz esteja sobre ele) disse: "Nos dias de vossa idade, vosso Senhor abre períodos de favorecimento; colocai-vos, então, em seu caminho."

Do livro Libertação do erro, de Al-Ghazzali
     Biografia do autor:
     Seu nome provém da profissão de seu pai (Al-Ghazzali - o tecelão). Nasceu em 1058 na Pérsia, mas estabeleceu-se desde cedo em Bagdá onde estudou teologia e jurisprudência e se tornou catedrático.
     Sua época era uma época de raro vigor mental e de intensas controvérsias filosóficas. Contra a fé tradicional, para quem a verdade provinha somente da revelação, levantaram-se os racionalistas (que só acreditavam na razão), os sufis (que só acreditavam na iluminação mística), e os pirronistas, céticos e sarcásticos.
     Al-Ghazzali não tinha ainda 20 anos quando a inquietação metafísica o dominou. Para ele, procurar a verdade não era um exercício mental: era uma paixão irresistível. A dúvida o torturava. Procurou a verdade em todos os sistemas filosóficos de sua época. Mas nenhum deles o convenceu.
     Aos 38 anos concluiu que a verdade não se encontrava talvez no estudo, mas na vida mística. Renunciou à sua cátedra, separou-se de sua mulher  e filhos, distribuiu seus bens e, durante 10 anos, viveu em anacoreta. Visitou Alexandria, Damasco, Jerusalém e Meca.
     Em 1105, sentiu-se iluminado por uma luz do Além e reencontrou ao mesmo tempo sua fé na razão e em Deus. Para ele,  a verdade está na conciliação entre os ensinamentos racionais, a iluminação mística e a revelação divina. Até o fim de sua vida, tentará realizar, expressar e difundir esta conciliação. O primeiro livro - o mais importante de seus tratados -- que ele escreveu no entusiasmo de sua iluminação inicial foi Al-Munkiz Min Ad-Dalal (Libertação do erro), cuja parte autobiográfica, em que traça o caminho de sua longa e dolorosa procura é, às vezes, comparada com As Confissões de Santo Agostinho.
     Após voltar ao magistério em Bagdá, recolheu-se na sua pequena cidade de Tus, rodeado por um círculo de discípulos. Morreu em 1111, deixando 80 obras, e tendo consagrado toda a sua vida à procura e à defesa da verdade.

Extraído do livro: As mais belas páginas da literatura árabe.    
Mansour Challita*
*Nascido na Colômbia de pais libaneses, se mudou para o Líbano quando jovem e ali se graduou em Letras e Filosofia. Veio morar no Brasil nos anos 50 e além de ter trabalhado como diplomata, Challita realizou diversas traduções de obras escritas em árabe, como livros de Gibran Khalil Gibran e o Corão .